10.5.04

Exposição Leveza - inauguração

A exposição resultante do projecto de parceria entre o Museu do Ouro de Travassos e a ESAD foi inaugurada no passado dia 8, sábado, com a presença de mais de 350 visitantes.
A iniciativa mereceu a atenção de vários orgãos de comunicação social, locais e nacionais, e teve direito a um destaque de duas páginas na edição 'Local' do diário Público de domingo, dia 9.
Trascrevem-se, a seguir, os textos que integram esse trabalho, da autoria de Abel Coentrão e Hugo Delgado.

Designers e Ourives Revolucionam Filigrana da Póvoa de Lanhoso
Por ABEL COENTRÃO
Domingo, 09 de Maio de 2004

Há uma revolução em curso nas vetustas oficinas de joalharia da aldeia de Travassos, na Póvoa de Lanhoso. Nas mesmas bancas onde se produzem os olhos de perdiz (conhecidas como contas de viana), os corações ou os brincos à camponesa que acompanham os trajes das mulheres do Minho, jovens designers substituiram os velhos modelos registados há gerações em livros de fumo por novas propostas, contemporâneas, minimais, que os dedos experimentados de alguns ourives transformaram em peças de filigrana de uma leveza visual que aponta para uma estética completamente nova, e para um publico bem mais urbano. Um trabalho realizado graças a uma parceria entre o curso de Artes/Joalharia da Escola superior de Artes e Design (ESAD) de Matosinhos e o Museu do Ouro de Travassos, que desde ontem, e até 30 de Agosto, expõe as peças resultantes do projecto de muitos sentidos e apenas um nome: Leveza.
Leveza, neste caso, tem mais que vem com a sensação visual, do que propriamente com o peso das peças. Como explica Manuel Sousa, um dos membros da família que fundou e gere o Museu do Ouro de Travassos (ver caixa), até se julga que, de facto, a filigrana terá sido a forma encontrada pelos antigos para fazer peças de ostentação mesmo com pouco ouro, mas a verdade é que o exagero de entrelaçados dá a muitas jóias um aspecto barroco, pesado, que os mentores do "Leveza" colocaram de fora da iniciativa que envolveu uma trintena de designers, entre actuais e ex-alunos da ESAD, e convidados portugueses e estrangeiros. Coube a estes últimos mostrar como a filigrana que os portugueses associam a meia dúzia de motivos e a outros tantos adereços, pode ter as mais variadas aplicações.
Se é possível que os alfinetes do catalão Ramón Puig mais se pareçam a homenagens filigranadas aos ambientes cromáticos de um Miró, e que ganhem com isso, porque não aplicar o mesmo conceito, mas em Portugal? Dito e feito. Depois de uma visita a Travassos por parte de uma comitiva de estudantes, no início do ano lectivo, o Museu do Ouro tomou em mãos o papel de facilitador do contacto entre a escola e os artesãos, tradicionalmente avessos a contactos que possam "revelar" os seus segredos. Dos seis que se mostraram receptivos, só três acabaram por aderir por completo ao projecto que fez os designers entrar pelas oficinas dentro. Hoje, Custódio Gomes e os irmãos Joaquim e Guilherme Rodrigues da Silva tem o seu nome na assinatura de peças que rompem por completo com a imagem da filigrana que herdaram dos pais, e que estes haviam já herdado dos avós.
Joana Caldeira por exemplo, transformou as conhecidas argolas de requife que encontrou na banca de Custódio Gomes em alianças, a que chamou "Entrançadas". A peça até já está no mercado e "está a ter sucesso. Podem juntar-se várias, por exemplo com o nome de cada um dos filhos", conta o ourives, visivelmente entusiasmado com as novas estéticas que esta parceria lhe deu a conhecer, e esperançado nos efeitos económicos da mudança. Aliás, este era, e, outro dos objectivos do "Leveza". "Penso que isto é uma semente e criou uma nova dinâmica em Travassos. E era importante trazer a inovação e fazer a ponte entre designers e ourives", afirma Manuel Sousa, que vê cumprido mais um dos objectivos estratégicos do Museu do Ouro: a evitalização económica desta actividade que mantém abertas cerca de 40 oficinas na freguesia.
"A versatilidade é uma boa forma de responder às necessidades actuais. A inovação é grande forma de dar a volta aos problemas", argumenta Manuel Sousa". Ao lado, Custódio mostra um colar com globo armado, de prata, com um rodilhão em filigrana solto lá dentro. Mas há mais. Pins com desenhos de crianças em filigranas, alfinetes, brincos, e medalhas que mais parecem apetíveis "bolachas belgas" filigranadas. Cionjugação com silicone, plástico, aço, seda, para, e até com o esmalte, usado normalmente dentro da filigrana, e que viu aqui invertido o seu papél, num trabalho de reabilitação do esmalte fotográfico que as mulheres de outras gerações levavam ao peito, com as imagens de filhos e maridos. Tudo exposto numa sala, ao lado de outra onde torques castrejos ou um diadema romano mostram quão antiga é a técnica da filigrana nestas paragens.
"Eu penso que isto é um ponto de partida. Daqui para a frente devemos continuar a trabalhar em parceria, diz a coordenadora do curso de artes/Joalharia da ESAD, Ana Campos, defensora da integração do design nas técnicas e recursos tradicionais. A docente lembra como a ideia inicial se desenvolveu ao ritmo de "uma bola de neve", atraindo o interesse do Centro Português de Design e do Centro Regional de Artes Tradicionais do Porto,que vai apoiar a itenerância da exposição, com paragens garantidas em vários pontos do país (Ver caixa) e, confirmou-se ainda esta semana, em Paris, na sede da Unesco. Dado este passo, o limite agora é apenas o da imaginação dos criativos, e o da vontade e capacidade técnica dos ourives. "Muitos dos que não entraram agora no projecto já vieram falar comigo, perguntar como é que é. Isto mexe", garante Manuel Sousa.


Um Museu com Olhos no Futuro
Domingo, 09 de Maio de 2004

Fruto da vontade do artesão Francisco Carvalho e Sousa, que durante cinco décadas coleccionou um espólio de um valor histórico incalculável, o Museu do Ouro de Travassos abriu há três anos, revelando ao público mais ou menos familiarizado com a filigrana a evolução desta arte ao longo de milhares de anos. Um percurso assinalado com peças antigas, como o belíssimo diadema da Idade do Cobre, e outras mais recentes, mas também elas inspiradas numa tradição que se perde nos séculos. Mas este espaço desenvolvido pela família Sousa não é apenas o repositório de memórias e da identidade desta freguesia da Póvoa de Lanhoso. Desde que o projecto foi ganhando corpo que os seus mentores desejavam vê-lo a contribuir para o desenvolvimento da actividade, o que na perspectiva de Manuel Sousa só poderia passar pela incorporação de inovação, não tanto nos métodos de produção, mas sobretudo no design, já que até aqui os artesão limitavam-se praticamente a seguir os livros de fumo com que os seus avós registavam as peças que trabalhavam. E daí que a chegada dos alunos da ESAD a Travassos, e a iniciativa que as duas instituições abraçaram, esteja a ser levada com todo o entusiasmo de quem vê nele o ponto de encontro entre uma tradição, e seu futuro. Há ourives que já não dispensam a companhia dos jovens designers. E outros que se alhearam do "Leveza", procuram agora


Autarquia Desafia Ourives a Juntar Esforços na Defesa da Arte
Por ABEL COENTRÃO
Domingo, 09 de Maio de 2004

Elói, um mestre de ourivesaria da Gália que haveria de ser bispo, e santo elevado ao estatuto de padroeiro dos ourives andou pela Europa nos idos do século VII. Mas centenas de anos antes já os romanos exploravam as riquezas minerais do Norte de Portugal. A famosa Geira, ou Via XVIII, transportava o ouro do coração do Minho para o coração do Império, deixando por cá um jeito de trabalhar o precioso metal que ainda hoje perdura, através de uma técnica que requer delicadeza, minúcia e tempo, a filigrana.
São muitos os dados históricos que atestam uma especial concentração de artesãos em zonas hoje integradas em várias freguesias do concelho da Póvoa de Lanhoso: Fontarcada, Oliveira, Sobradelo da Goma e Travassos. Uma presença que hoje praticamente se resume às duas últimas localidades, com vinte e quarenta oficinas activas, respectivamente. Segundo Maria José de Carvalho e Sousa, filha de Francisco Sousa, o impulsionador do projecto do Museu do Ouro de Travassos, as referências escritas a esta actividade no concelho datam de pelo menos 1730. E até a actual pedra de armas da Póvoa de Lanhoso, datada de 1940, integra motivos de filigrana, o que atesta a importância que o próprio poder local foi dando a esta actividade.
Nos últimos anos, a autarquia voltou a olhar para a arte de trabalhar o ouro como um factor de identidade e promoção do concelho conhecido por ter sido berço de Maria da fonte, a tal ponto de lhe ter aposto um novo cognome, o de Capital da Filigrana. A actividade está lá, com empresas de maiores dimensões a operar para o mercado nacional e internacional e outras, familiares, subsistindo nas pequenas oficinas, mas continua a haver no discurso dos responsáveis autárquicos um certo travo de insatisfação. Para o presidente da Câmara, Lúcio Pinto, há muito mais a fazer pela preservação, desenvolvimento e publicitação da ourivesaria e da filigrana que se faz por estas terras.
Defensor da certificação de produto, associada a uma marca local, o autarca abre as portas ao apoio da edilidade em tudo o que possa ser feito para o conseguir, mas exige que do outro lado os ourives recuem no tradicional individualismo que os leva a olhar com desconfiança ou desinteresse para iniciativas como o Projecto Leveza - cujo catálogo é patrocinado pelo município - que para Pinto vai fazer muito pela promoção da ideia de "Capital da Filigrana" através da exposição itinerante ontem inaugurada. "Espero que com isto outros objectivos mais ambiciosos possam ser alcançados", desabafou, antes de desafiar todos os envolvidos nesta actividade para uma reunião onde possam ser definidas estratégias de valorização da economia e da cultura associadas ao ouro.


"Antigamente Tínhamos Medo de Mostrar a Arte a Outros"
Domingo, 09 de Maio de 2004
Custódio Gomes, 42 anos, ourives
Custódio Gomes conhece a banca de ourives desde que os seus olhos a conseguiram alcançar. E o pai insistiu para que os seus dedos experimentassem a textura do ouro desde cedo. Teria uns oito anos quando começou a desempenhar algumas tarefas. A mesma idade da filha, Inês, que exprime um interesse pela arte que este ourives gostaria de ver transformado em vocação. Seria a garantia de que o jeito herdado do pai, que o herdará já do avô, saltasse para mais uma geração, já que na família, entre os mais novos ninguém assumiu interesse por preservar o mester. Para já, ele e o irmão, Hermenegildo, aguentam a banca que o velho Boaventura ainda frequenta "quando lhe apetece". Como outros, habituou-se a trabalhar em família, seguindo os livros de fumo com peças já realizadas pelo avô, mantendo em vigor a máxima o segredo é a alma do negócio. "Antigamente tínhamos medo de mostrar a arte aos outros", conta, como que a justificar as dúvidas iniciais com que também ele encarou a proposta do Leveza. O certo é que depois das primeiras visitas de alunos da ESAD, Custódio, que tomou-lhe o gosto e acabou por trabalhar com uma dezena deles, tendo desenvolvido, a partir do projecto, uma relação profissional com a designer Joana Caldeira, com quem passou a encontrar-se pelo menos duas vezes por semana, para discutir novas peças, que já estão no circuito comercial.

"A Filigrana Está Um Bocado Estagnada"
Domingo, 09 de Maio de 2004
Carla Castiajo, 29 anos, designer
Terminou o curso de Joalharia da ESAD já com um prémio de uma famosa galeria Holandesa, o Marzee 2003. Estagiou em Roma, prepara-se para ver o seu trabalho exposto em Massachusetts, numa colectiva da Mobilia Gallery, e até pretende ir atrás de um dos seus designers favoritos, o holandês Ruudt Peters, num mestrado em que este participará, como docente, na Konstfack, o Instituto de Artes, Ofícios e Design de Estocolmo, na Suécia. Mas para já, Carla Castiajo, uma portuense de 29 anos, prepara-se para passar uns tempos na aldeia de Travassos, numa casa cedida pelos irmãos Joaquim e Guilherme Rodrigues da Silva, com os quais trabalhou ao longo dos últimos meses no âmbito do "Leveza". Uma experiência que vai repetir, durante pelo menos um mês, período durante o qual frequentará, de sol a sol, a oficina tradicional em que aquela família trabalha o ouro. Objectivo: tomar contacto com as técnicas, de modo a poder "reinventar" a filigrana, algo que até já começou a fazer. "A filigrana está um bocado estagnada", nota esta jovem designer e artista (ou algo entre a fronteira das duas, como admite), que encarou este projecto de reanimação da filigrana como "um tiro no escuro", mas que agora que lhe tomou o gosto não pretende sair da aldeia-museu sem uma ideia concreta das potencialidades técnicas desta arte, ou não fossem estas, nalgumas vezes os freios, noutras os aceleradores, da imaginação.